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Contemplação

 

 

Rosani Abou Adal

 

Presa no meu dormitório

tento dividir a solidão com o peixe

cercado de paredes de vidro.

Cabisbaixo no fundo do aquário,

absorto, perplexo, faceio,

companheiro me olha.

Quero tocá-lo e senti-lo

através da parede  invisível.

Ele acompanha meus movimentos,

entende meus sinais.

Nada e nada e bóia na superfície

à espera de carinho.

Suavemente toco

suas escamas sedosas.

Ficamos horas a nos contemplar.

 

 

GOSTO DE AVELÃS

 

 

Rosani Abou Adal

 

 

Dirigindo o veículo que me conduzia

às minhas quatro paredes,

viajei nas rodas de Lenoir

rumo à rua Roquette.

No café em frente ao terminal,

observava através das cortinas transparentes

os chapéus que passeavam na calçada.

Tentava te perceber meio à multidão,

não via o vulto de tua imagem.

Sobre a mesa Uma Paixão no Deserto,

nos tipos de Didot, Balzac me acompanhava.

Entrastes pela alta porta de vidro

com um buquê do campo nas mãos

como fosse este o primeiro instante.

Sentastes ao meu lado,

beijastes suavemente minhas mãos.

Não falastes nada, mas teus olhos

disseram-me frases inesquecíveis.

Tomamos um café, nosso beijo

com gosto de licor de avelãs.

Voltei ao meu Corcel, à grande avenida

que me conduzia à região leste.

Na minha memória Delacroix

guiava-me à Catedral do meu Silêncio.

Emudeci no cruzamento,

teu cheiro se fez presente no ar.

Dentro do meu peito tua voz

acalentou-me no tráfego.

Minha boca com gosto de avelãs.

 

 

(In “Catedral do Silêncio”, João Scortecci Editora, 1996.)

Auto-Retrato

 

Rosani Abou Adal

 

Estou tão só dentro de mim
que até as estrelas emudeceram.
Não escuto o cantar dos pássaros,
que se inquietaram diante do meu silêncio.
Não consigo psicografar frases de amor,
minhas mãos se fecharam para o tempo,
a única palavra que ecoa no meu peito é a solidão.
Não sei porque me sinto só.
Um mihão de pessoas ao meu redor,
não vejo um sorriso sequer.
Meu sorriso se calou,
não o vejo no espelho.
Estou triste e feliz.
Feliz na companhia da solidão,
triste porque não tenho um sorriso
e tudo é pausa ao meu redor.
Estou ficando duplamente triste,
a solidão vai me abandonando neste instante.
Olho a multidão e a felicidade
desponta no sorriso de uma criança.

Código Morse

Rosani Abou Adal

Bolhas de espuma boiam sobre a água,
código morse da espécie Beta
comunicando que é adulto
e precisa uma fêmea para acasalar.
Olhos tristes e pequenos
protestam a solidão aquática.
No fundo do aquário, sem mover nadadeiras,
sonha com a azulzinha, a vermelhinha
para compartilhar carinho e afeto.
Seu coração vazio e infeliz.
Fala português e portunhol
com suas guelras.
Ninguém entende a mensagem.
Tenta outra vez,
o código sem tradução.
O Beta codifica a solidão oculta
- a companheira invisível
surge do outro lado do aquário.

​​

Templo de Zeus

 

Rosani Abou Adal

 

 

A solidão invade a noite do sábado,
o silêncio toma conta das ruas.
Não escuto cachorros latindo,
apenas o escapamento solto da motocicleta
voando sobre o asfalto como um relâmpago.
Aguardo uma eternidade teu chamado mudo,
o telefax e secretária eletrônica se calaram.
Tento me comunicar contigo por telepatia,
não entendes meus códigos.
Viajo pelo túnel do tempo rumo à terra de Homero
para ouvir tua voz e codificar meus sinais.
Percorro o Bosque Sagrado do Olimpo,
Parthenon, Palácio Cnosso, Pórtico de Cariátides,
Acrópole de Lindos, Templo de Apolo,
Templo de Posêidon, o Templo de Zeus,
e assumo formas de touro, cisne, anfitrião,
chuva de ouro para me aproximar de ti
como fizera Zeus com Europa, Leda, Danae e Alcmene.
Zeus mais feliz que eu com as mortais,
de suas aproximações surgiram Perseu, Pólux e Helena.
A máquina do tempo me traz de volta
ao silêncio do fim de semana.
Nada valeu me transformar em cisne,
touro branco, chuva de ouro e anfitrião.
O aparelho de Graham Bell se calou no tempo.

​​

Madrugada

Rosani Abou Adal

 

Na placidez da noite,

o apito do guarda-noturno.

Um silvo longo e um breve.

A cadela ladra assustada

com medo da madrugada cálida.

Deitada no meio da rua,

de pernas para o alto,

a gata se lambe sossegada, tranqüila.

Um sibilo agudo se faz presente

na solidão noturna.

Nas casas silenciosas

as pessoas dormem,

cerradas entre quarto paredes,

revelam os segredos da familiaridade.

A gata permanece sobre o asfalto

fazendo confidências individuais.

A cadela frente ao portão

assiste a quietude da noite.

O homem sonha profundo,

o colchão grita frases de amor.

O guarda da noite vigia as casas,

observa as amigas da vida noturna.

Em frente à minha janela

assovia três vezes e prossegue a caminhada.

Acompanhada do meu isolamento

escuto silvos e observo as pessoas

caladas em suas privacidades.

Deitada no meu leito,

coberta com meu manto,

repouso com sofreguidão.

A gata, a cadela, o guarda,

companheiros da madrugada.

 

Rosani Abou Adal

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